ASPECTOS DOS NEGROS NO ESPORTE

A participação do negro no
esporte mundial tem suscitado a curiosidade e o interesse de muitas pessoas,
estejam elas ligadas diretamente às áreas das atividades físicas, ou não.
Também, algumas pesquisas, dentro desse tema, já foram feitas para tentar explicar
o desempenho dos atletas negros em algumas modalidades esportivas, sendo quase
que exclusivamente voltadas para as “individualidades biológicas” dos
afro-descendentes. Tendo sua origem no feito do lendário corredor
norte-americano Jesse Owens, na Olimpíada de Berlim, em 1936, a proposta deste
artigo é justamente oferecer uma releitura do negro no esporte e refletir como
foram produzidas, através da história, várias representações que engendraram
muitas identidades neste sujeito, priorizando desnaturalizar uma
destreza, a priori, para determinados esportes e outros, não. A
questão do conhecimento que orientou esta pesquisa foram os estudos culturais e
sua perspectiva da produção de identidade. Para tanto, procura-se resgatar um
pouco da história da Educação Física no Brasil e seus primeiros olhares para as
pessoas negras, mostrando como ela foi usada pelo movimento eugênico, para seus
intentos de melhoria da raça brasileira. Introdução O presente artigo é fruto
de inquietações pessoais sobre a participação do negro no esporte, sua
inserção, sua trajetória, sua naturalização para alguns esportes e suas
dificuldades para outros, bem como contribuir para a desconstrução de algumas
identidades que ainda o acompanham, no mundo esportivo.
Contribuíram para a construção
desta pesquisa e das linhas orientadoras, para compreender e problematizar a
trajetória esportiva do negro: minha experiência como professor da Rede
Municipal de Ensino de Porto Alegre e os conhecimentos adquiridos como
integrante do grupo de estudos F3P-EFICE (Grupo de estudos qualitativos e
formação de professores e práticas pedagógicas em Educação Física e Ciências do
Esporte). Alem das questões mencionadas, também tiveram significativa
importância, neste estudo, o gosto particular pelo esporte e minha negritude,
na investigação dos discursos que estão produzindo os atletas negros no esporte
e as representações sobre esse sujeito, no decorrer da história. A leitura do
artigo de Eloy Dias dos Angelos, O negro na sociedade atual: os seus anseios, sonhos
e perspectivas, também teve forte influência na escolha pelo assunto, sendo
muito reforçada por este comentário de Angelos (1988, p. 20-21): “Na
Universidade, quando da elaboração de trabalhos de conclusão de curso, o
universitário, principalmente o universitário negro, pode e deve voltar-se para
a abordagem de assuntos e temas que tenham a marca inconfundível das nossas
raízes e origens, dos nossos problemas e lutas, tensões e sonhos, perplexidades
e reivindicações”. Os pontos destacados aumentaram meu interesse e minha
vontade de escrever sobre o tema, procurando desnaturalizar a imagem do
indivíduo negro como atleta, trazendo uma releitura sobre o assunto e
discorrendo sobre como se deu a produção histórica a priori do personagem negro
no esporte. O objetivo de trazer alguns pontos sobre a questão do negro no
esporte para serem desenvolvidos neste artigo, é enfocar quais os mecanismos
sociais e culturais que produziram as representações das pessoas negras e como
se engendraram as identidades atribuídas ao negro no esporte. É possível
observar a influência dos discursos científicos que colocaram o atleta negro
num espaço limitado de atuação, pelos seus veredictos. É importante a cisão dos
olhares dogmáticos sobre as representações do “corpo” de homens e mulheres de
origem negra no esporte, além de compreender que a ciência é muito importante
para contribuir com algumas respostas, mas, não deve ser colocada em um lugar
de verdade absoluta, sendo que este contexto foge ao seu domínio e a deixa sem
a resposta final para muitos questionamentos. Outrossim, trata-se de mais uma
contribuição no processo de compreensão deste tema. O artigo está organizado,
primeiramente, dentro de um cunho histórico, que localiza o sujeito negro e
suas oportunidades de trabalho, mediante o processo de industrialização no
Brasil, a partir do início do século passado, considerando-se que a questão do
trabalho foi crucial para sua trajetória socioeconômica e a busca de guarida no
esporte. Também, serão abordadas questões pertinentes à capoeira, como
manifestação cultural e como, outrora, mecanismo de resistência do negro,
frente à expropriação de sua liberdade de expressão. A cultura também trouxe às
pessoas negras muitas representações iníquas, que se transformaram em
identidades, que atravessaram o tempo e a história e persistem até a
contemporaneidade. E, por último, apresenta-se a primeira representação do
negro com a Educação Física no Brasil - o que se deu no início do século XX e
se estendeu até o período governamental chamado Estado Novo - e como vem
ocorrendo o processo de ruptura do sujeito negro, frente aos discursos
científicos em nome da cultura do movimento. Esta temática é muito escassa no
arcabouço da Educação Física; acredita-se na importância da abordagem focada no
sujeito negro, o que contribui significativamente com o esporte mundial, mas,
que busca estar em outros cenários e, por isso, vem quebrando com muitos
discursos que o colocam dentro de um espaço exíguo de atuação. Sendo o esporte
um produto cultural muito divulgado, torna-se um dos maiores fenômenos sociais
dos últimos tempos, mobilizando a grande mídia, as grandes empresas de
marketing e a opinião pública. O negro e a transição do trabalho
agrícola-artesanal para o urbano-industrial Após a inserção do sujeito negro no
mundo ocidental, as representações que foram produzidas a seu respeito e o
processo de injunção de identidades a que foi submetido, especificaram-no em
alguns esportes e, em outros, não. O desempenho dos africanos e
afro-descendentes em determinados esportes, de forma marcante, vem despertando
o interesse do mundo e das pessoas que estudam o fenômeno esportivo. Altman
(2000) acredita que os atletas negros, no século XXI, arrebatarão todas as
medalhas olímpicas, tanto nas provas de velocidade, quanto de resistência. Mas,
como se deu essa progressão dos(as) negros(as) no esporte? Que condições
sociais se engendraram para que se desse esse crescimento nas esferas
esportivas, e por que viés a Educação Física teria sua participação, neste
contexto? Busca-se, na história, os alicerces para tais investigações e, no
advento da industrialização vinda da Europa para a América e, consequentemente,
para o Brasil, é possível localizar a raiz. A escolarização - que vai se
constituir em uma ferramenta importante no surgimento e no crescimento da
industrialização - e o fim da escravidão promoveram a passagem do sistema de
produção vigente, de agrícola-artesanal para urbana-industrial. Essa
substituição produtiva foi ocorrendo lentamente e, com ela, se verifica a crescente
especialização da mão-de-obra. No Brasil, essa nova realidade nas estruturas de
trabalho acarretou uma maciça migração europeia, em que o braço escravo foi
substituído pelo imigrante e as oportunidades de trabalho nasciam no setor da
indústria, que começava a se organizar. Nessa nova faceta do mundo do trabalho,
o sujeito negro foi mantido à margem. Sobre essas relações, Gonçalves (1994)
comenta que, no decorrer do processo de civilização e contínua racionalização,
os indivíduos foram ficando cada vez mais independentes da comunicação empática
corporal com o mundo, diminuindo sensivelmente seu potencial de percepção
sensorial, seus sentimentos, sua espontaneidade nos movimentos e a mecanização
de seus gestos. Assim, o sujeito negro ficou de fora da nova ordem tecnológica
da produção e precisou buscar, em novas instâncias, seu meio de sobrevivência e
de crescimento pessoal. Suas oportunidades de trabalho, durante muito tempo,
foram outras, perfazendo grupos marginalizados, vendedores ambulantes nos grandes
centros, empregadas domésticas, estivadores, carroceiros, tropeiros, dentre
outros. Enfim, trabalhos em que a força era vista como elemento central. As
novas técnicas fabris direcionaram o jeito de ser e de viver das populações,
tendo nas revoluções tecnológicas a mola que impulsionou as sociedades a um
novo crescimento ou, buscando outras formas de adequação, no caso em questão,
para o contingente de pessoas negras. Esse período da história do Brasil, com a
implantação da ORT (Organização Racional do Trabalho), nos comentários de
Grando (1996), vai ao encontro da era Vargas, época de intensas mudanças
sociais e trabalhistas, como também, culturais. No que se refere a esse
aspecto, a capoeira volta ao cenário de atuação nacional, uma vez que se
manteve afastada dos olhares da lei por muito tempo, servindo como forma de
identificação e resistência corporal do negro. Os espaços destinados e ocupados
pela população negra convergiram para a marginal das cidades, engendrando
favelas, guetos e vilas. É desses cenários que vão se constituir grandes ícones
do esporte mundial e que ainda continuam a surgir. Esses locais contribuíram
com o esquema corporal de homens e mulheres, principalmente de origem negra,
pois, tais territórios foram - e são - de grande ocupação dos
afro-descendentes. A questão da territorialidade gerou estigmas de
identificação e interesses comuns nas comunidades negras, por onde elas se
formassem como: escolas, mutirões, associação, ligas de futebol, dentre outros.
Conforme Endler (1984), um exemplo desse contexto territorial foi o que
aconteceu na Porto Alegre de 1925, onde a colônia africana, hoje bairro Bonfim,
fez surgir a famosa Liga da Canela Preta1; devido ao segregacionismo dos
brancos, com relação à participação dos negros nos seus campeonatos de futebol,
evidenciando-se a ocupação do negro na periferia da cidade e a busca e o
estabelecimento de seu espaço lúdico, nos campos de futebol de várzea. A
corporeidade do negro, frente ao mercado de trabalho, de certa forma, se
apartou da coerção corporal a que foram submetidas as pessoas brancas dentro
das indústrias alienantes, já que seu corpo serviu de resistência contra a
domesticação dissimulada do uso social e político do corpo, tendo bastante
ênfase na música, na dança e, principalmente, no esporte. Como comentado
anteriormente, as oportunidades de trabalho dos negros, comparadas com a
população branca, foram diferentes, sendo, em sua maioria, em trabalhos
informais que ainda guardavam reminiscências da proximidade com o
pós-escravidão. História, cultura e produção de identidade É inegável que a
capoeira teve um papel preponderante na história cultural dos afro-descendentes
no Brasil, além de representar uma atividade corporal que ia além do aspecto de
uma técnica de luta, serviu, no período colonial, como uma forma estratégica de
resistência física e cultural contra a escravidão. Segundo Reis (1997), a
capoeira, no Brasil, esteve vetada durante muito tempo pelo decreto número 487,
de outubro de 1890. Nele, percebe-se a produção de algumas representações que
geraram identidades no sujeito negro, a partir dos efeitos de verdade que elas
produziram no pós-cativeiro, como: formadores de bando ou malta, vadios,
malandros, desordeiros, preguiçosos, etc.. Todas essas representações passaram
a conviver com os afro-descendentes, frente à sociedade brasileira, que queria
um negro dócil e comportado e que aceitasse a condição de inferioridade. Já na
América do Norte, os negros, no período escravagista, foram coibidos de
manifestar sua cultura corporal na forma de dança, assim como na religião,
sendo que, nessa última, deu-se o processo de aculturação. Esses aspectos
levaram ao entoar de cânticos, como expressão de desgosto, frente à situação de
penúria da condição escrava. Nos estudos de Oliveira (2001), os negros
spirituals, como foram chamados os cativos boreais, deram início à forma de
lamento chamado blus, um tipo de canção que se popularizou por todo o mundo.
Traçando um paralelo dos negros brasileiros e estadunidenses, pode-se notar uma
maior vinculação cultural dos brasileiros, principalmente para o futebol, a
dança e, também, a música. Já entre os norte-americanos, para o basquete, o
atletismo e, fundamentalmente, a música. De certa forma, existe uma semelhança,
quanto às manifestações corporais na prática dos esportes e em nível artístico,
sendo necessário frisar que essas identidades foram reforçadas, frente às
circunstâncias sociais desfavorecidas e às oportunidades a que os negros foram
submetidos, ao longo da história. Tal situação, de certa forma, colocou a
população negra na dependência direta com seu corpo, ou seja, os negros
necessitaram adquirir um corpo forte para o trabalho pesado, no qual se viram
inseridos pelo processo de exclusão social. Os locais destinados às pessoas
negras, com o desenvolvimento sociocultural, fomentaram os discursos das
identidades sociais, culturais e esportivas. E, como comenta Capoeira (1996, p.
42): “é exatamente por ter sido sempre tratado como corpo que encarna
exclusivamente trabalho que este lado da cultura africana se viu reforçado para
que se estruturasse estrategicamente, visando à preservação e ao fortalecimento
do corpo como instrumento de transmissão de cultura”.
O ATLETA NEGRO NO BRASIL
No Brasil, desde os tempos de Rui
Barbosa, a cultura europeia foi idealizada pelas elites vigentes, como modelo
de uma sociedade burguesa que inspiraria o ideal de liberdade e um espírito
revolucionário nos trabalhadores brasileiros e teve guarida no período do
Estado Novo. A população negra, há pouco saída da condição de escrava, era
produzida como desqualificada e analfabeta para os sonhos de crescimento da
nova ordem, de cunho positivista; branquear a população transformou-se em um
imperativo para o ideário da nação. Essas asserções estão fortemente veiculadas
nos comentários de Soares (1994, p. 105), aos emigrantes, que diz: “A imigração
atendia a duas preocupações básicas desta nova classe do poder. De um lado dava
conta do trabalho, propriamente dito, de modo mais ‘competente’ e até certo
ponto criativo, e de outro contribuía para aumentar, no Brasil, a população
branca, ainda pequena no final do império”. A autora ainda continua seus
comentários sobre os imigrantes e traça uma comparação entre a população
brasileira, de maioria negra, na qual inculca passividade e uma servilidade
imanada no seu ser, enquanto o imigrante, afirma Soares (1994, p. 104-105),
“[...] contribuiu de modo decisivo para viabilizar no Brasil a construção da
nova ordem. Foi por assim dizer, o motor do estágio de desenvolvimento
capitalista no Brasil naquela época. De um outro lado fez nascer, no pequeno
operário brasileiro, as ideias de liberdade, as ideias revolucionárias, as
ideias de luta”. As dificuldades encontradas pelos afro-descendentes, até a
metade do século passado, ganharam dimensões sociais, culturais e ideológicas
que estabeleceram inúmeros discursos, dizendo da incapacidade dos sujeitos
negros para o processo de produção, dentro de uma filosofia capitalista que
emergia e as traduções em identidades, com as mais variadas atribuições de
cunho negativo. Nessa esteira, a Educação Física emergia no Brasil, no início
do século XX, como meio de consubstanciar as medidas de melhoria da “raça” da
população brasileira, que possuía um grande contingente de população negra e a
ela atribuíam comportamentos de servidão e analfabetismo, que dificultariam a
escalada do progresso emergente do país.
RESISTÊNCIAS E CONQUISTAS DOS NEGROS NO ESPORTE
A partir dos resultados de Jesse Owens e do
avanço das técnicas de treinamento, a raça negra começou a ser vista como
objeto de estudo pela ciência do esporte. O negro passa de uma concepção de
inferior, dentro de um movimento evolucionista, darwiniano e eugênico, para a
rotulação a certos esportes em que a questão econômica não era um empecilho,
como: o atletismo, principalmente nas provas de velocidade, pois, mais tarde os
atletas negros se destacariam, também, nas provas de meio fundo e fundo, boxe e
o futebol. Na corrente de ascensão do treinamento esportivo, o esporte olímpico
fugiu ao ideal do Barão de Cobertim, idealizador dos Jogos Olímpicos da era
moderna. A "união entre os povos” era o que ele priorizava, mas, os jogos
viraram uma disputa política dentro do esporte. O bloco socialista e o
capitalista lutavam por uma superioridade dentro do campo esportivo. Esse
período ficou conhecido como guerra fria, onde o primado no esporte era de quem
possuía as melhores técnicas de treinamento e conseguia obter os melhores resultados.
A fisiologia, a cinesiologia e a anatomia passaram a exercer papel
preponderante nesta filosofia; surgem os princípios do treinamento esportivo
que vigoram até hoje na preparação física, sendo que, um deles, o da
“individualidade biológica”, é o escopo do presente estudo. A individualidade
biológica analisa os indivíduos e suas características genotípicas e
fenotípicas para dirigi-lo a uma determinada modalidade esportiva e os métodos
de treinabilidade.
Essa
nova proposta moldou o sujeito negro a determinados esportes e a representá-lo
como corredor nato de velocidade, uma representação gerada a partir do
crescente aparecimento de velocistas negros. Como já mencionado, o sujeito
negro foi alvo de muitos estudos, dentro do campo esportivo, e a fisiologia
procurou decompô-lo em sistemas de funcionamento isolado. Atribuíram o
desempenho dos atletas negros velocistas, segundo os estudos de Cintra Filho
(1997), ao seu alto percentual de fibras rápidas, quadril mais estreito,
quadríceps mais robusto e pernas (segmento do membro inferior abaixo do joelho
até o tornozelo) mais finas; tudo isso para proporcionar uma melhor
aerodinâmica para o deslocamento em alta velocidade. Também, foram buscar
respostas na África, onde os corredores de provas de velocidade provinham da
parte ocidental e os de prova de longa duração, da parte oriental; sendo essas
duas regiões separadas, geograficamente, durante muito tempo, pela grande fossa
africana ao leste, oriundas, no passado, por erupções vulcânicas e ao norte,
pelo árido clima do deserto. Outra questão inquietante é que tal supremacia dos
velocistas negros e fundistas (corredores de longas distâncias) só ocorre entre
o sexo masculino, sendo que, no feminino, existe um equilíbrio.